Meu quase relatório

Acampamento Marisa Letícia [um quase relatório]. Lula e o delegado Macabéa, por Armando Rodrigues Coelho Neto

Era quase noite quando chegamos ao Acampamento Marisa Letícia. Um carro da polícia estava parado ao lado. De pronto, uma estranha cena, que parecia filme de guerra. Era como se o inimigo estivesse prestes a atacar, sendo necessário se proteger. Homens simples a empilhar sacos de areia, ganharam ares de trincheira. Estranhei, mas me dei conta de que dias atrás, um fascista passou atirando contra pessoas no acampamento. Meu sobrosso aumentou e entrei no que dei de chamar “Espectro de Curitiba”.
Vigilantes quanto à movimentação, os policiais não deram importância para o local onde paramos o carro. Entramos no acampamento, uma “coordenadora” nos recebeu. Pedimos ajuda para tirar os  mantimentos que trouxemos, que apesar de parcos eram porém pesados. Sem burocracia, deixamos os alimentos, atentos aos sorrisos dos homens que transformaram em coxinha coletiva uma grande barraca. Um cheiro bom de comida no ar. Feita a entrega, sem me identificar, aproveitei para percorrer o ambiente: barracas e mais barras, crianças com mamadeira e outras a brincar como se estivessem num parque. Olhares de esperança e garra sobre mim - estranho no ninho, teve efeito energizante.
Tudo muito rápido. Seguimos para as imediações do prédio da Polícia Federal, ironicamente construída pelo ex-presidente Lula, sem saber que lá seria sua morada provisória, por conta de um processo político fajuto. O prédio, que enche de orgulho dos policiais federais, hoje abriga o homem que mais fortaleceu a instituição em toda história da instituição, com meios, leis e salários.
Já próximos, começa a busca por um lugar para estacionar. Não saia de minha cabeça o tal Espectro de Curitiba, que no primeiro dia foi aguçado, quando na mesa ao lado da qual almoçamos, três almofadinhas falavam de política, Visivelmente havia dois bolsopatas e mais um que didaticamente disse que a prisão de Lula precisava durar até a eleição de Marina Silva.

Durante a tentativa de estacionar encontramos uma vaga de frente a casa cheia de grades e um pequeno jardim. Tentando administrar o espectro, suspeitei em vão da vaga. Quem sabe um tiranoide não quer que pare aqui? Encarei, perguntei e gentilmente o senhor da frente da casa e ele concordou.  Carro estacionado, nos deslocamos a pé à praça Olga Benário, endereço que o aplicativo Wase não reconhece. Afinal, o novo nome foi criação da militância pró Lula. Cheguei energizado pela alegre militância, enquanto sumia fantasma do mal. Gritos, palavras de ordem, vendedores de camisetas, botons, bandanas, gente fazendo faixas, cantos dissonantes, típicos da espontaneidade inorganizada. Conversei com um dos seguranças. Falou bem dos vizinhos, “é gente até simpática”. Falou também do acordo firmado entre a vigília sobre o pacto de silêncio a partir das 19 horas, que naquele dia, finalmente chegou.
- Atenção pessoal! Está chegando a hora de fazer a saudação ao Presidente Lula, anunciou o locutor. Já havia uma viatura estacionada com faróis dirigidos ao movimento. Ao ser anunciada a saudação iminente, mais duas viaturas saíram do prédio da PF e se posicionaram, como que a formar uma barreira de proteção contra os manifestantes. Nesse momento, a dúvida que eu tinha se o que se gritava ali era possível escutar de dentro do prédio da Polícia Federal se desfez. As viaturas postadas no início da saudação foi sintomático. E lá estavam, como que para evitar eventual avanço da resistência em direção ao prédio, mas não passou disso, de mera precaução. E veio o tradicional “Boa Noite Presidente Lula”, sob gritos e cânticos. Sons desligados, militância dispersada...
Saimos para jantar e não retornamos ao acampamento. No dia 1º de maio, fomos avaliar a movimentação nas primeiras horas do dia. Aqui ali um militante, sempre saudando um ao outro com a expressão Lula Livre. Paramos numa farmácia, e para nossa surpresa duas atendentes vieram conversar com as amigas petistas que me acompanhavam. Com discrição, falaram da simpatia pela causa petista, mas que “não poderia dar muita bandeira”. Falaram também do respeito e admiração pelo Presidente Lula. Deixamos a farmácia revigorados e voltamos ao hotel. Mas, antes de entrar no elevador, um dos funcionários da recepção veio apressado falar comigo. “E aí? Como está o 1º de maio do Lula?”...
Deixamos o hotel e fomos almoçar, ainda que com receio pelo uso de roupas vermelhas. Saindo do restaurante, fomos em direção à Praça Santos Andrade (Praça da Democracia), no centro histórico de Curitiba. Foi lá que a festa cívica tomou corpo. Mas, antes era necessário procurar estacionamento e já àquela altura, a marcha do acampamento já formava uma grande massa em direção ao local, atrapalhando o trânsito. Na busca de vaga, avistamos um vendedor de alfajones. Soltamos nosso grito de guerra: “Lula Livre!”. Com um olhar de alegria, o vendedor respondeu: “Soltaram? Não tenho visto jornal nem TV”. Ele não tinha entendido que era apenas uma saudação...
E foi assim que, aos poucos, o Espectro de Curitiba foi se diluindo. A imagem torpe da cidade, formada por procuradores ranzinzas, juizecos e juizecas arrogantes e preconceituosos estavam impregnadas. Era como se o fantasma Sejumoro estivesse nas ruas e pudesse surgir das trevas. Era como se a postura esquizofrênica de meus colegas da PF estivesse impregnada nas paredes, latões de lixo e bueiros. Seria o Espectro de Curitiba uma caricatura? O monstro imaginado não aparecia, quando me dispus rever minha ideia. A amostra mínima não convencia. Cogitei que a elite rançosa de Curitiba tivesse deixado a cidade no feriado prolongado e que só os mais pobres ficaram...
Continuo confuso sobre isso. A escritora Clarice Lispector em algum lugar já teria dito que os relatos de curtos viajantes nunca lhe deram a ideia exata de onde eles estiveram. Eu não passava de um curto viajante... Mas, seguiu-se durante a noite, gente nas paradas de ônibus trajando vermelho, transitando em bares, tudo a esmorecer o tal espectro.
Na volta para o aeroporto, um taxista simpático ignorou minha camisa Lula Livre. Não criei diagnóstico, retornei à São Paulo tranquilo, mas vigilante quanto aos lobos solitários que não titubeiam quando querem agredir. Os fascista estão aí para apavorar: primeiro, os tiros na Caravana do Lula, depois os disparos no acampamento, entre outros atos hostis. Na mais recente versão surgiu um delegado federal Macabéa. Duas vezes reprovado no psicotécnico, algum parafuso a menos devem ter encontrado. Ele destruiu ensandecido os aparelhos de som dos simpatizantes de Lula. Ao ver a foto do moço, lembrei de sua inconveniente intervenção num Congresso de delegados da PF, na cidade de Vila Velha. Ao lado do senador Magno Malta (PR/ES), como se estivesse se sentindo a pessoa mais importante do mundo, interrompeu uma palestra do ministro Ricardo Lewandowski (STF), constrangendo palestrante, plateia e organizadores. Depois, fiquei sabendo que ele levou a esposa grávida para os Estados Unidos, por que queria seu filho nascesse estadunidense... Síndrome de vira-lata?
Em princípio fiquei enfurecido e com raiva daquele policial. De repente não senti mais raiva, mas somente pena. Ele é um coitado. É uma espécie de Macabéa - personagem criada por Clarice Lispector, na obra “A hora da estrela”. Ela dizia que, de tão precária, Macabéa não sabia que era Macabéa, assim como um cachorro não sabe que é um cachorro. Deduzo que um coitado não sabe que é um coitado, coxinha não sabe que é um coxinha, um fascistoide idem, juizecos e juizecas não sabem que são juizecos e juizecas. O ódio irascível e inconfessável são para eles forças motrizes. Ódio, preconceito violência. Para eles, é difícil assimilar que a luta de Lula é também por eles e pelo coitado que foi nascer nos Estados Unidos. Os prédios onde trabalham e os seus salários são prova disso. Por essa razão, quando durante o show de Bete Carvalho ela cantou “você pagou com traição, quem sempre te deu a mão”, na minha mente vinha o escudo da federal e o delegado Macabéa.
E lá se foi meu quase relatório...
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo